domingo, 17 de junho de 2007

Capítulo 6 (III)

De volta à Terra, os nosso heróis conversam alegremente num cemitério – é dia (noite) de sacrifício para Zaen e os outros resolveram acompanhá-lo, em parte por pura amizade, mas também um pouco para compreenderem melhor a lógica dos rituais, de forma a tentarem dissuadi-lo daquela estupidez.
Anfira estava obviamente chocada; cristã como era, tudo aquilo era horrível para ela e teve de se esforçar bastante para não fazer ali mesmo uma fogueira e queimar Zaen no momento. Matthieu e Madalena esforçaram-se bastante também, provavelmente até mais que Anfira, pois tiveram de ser eles a segurá-la e, afinal, ela tem super-poderes…
Depois de a conseguirem acalmar (com um tranquilizante poderoso que tinham cravado ao Dr. Orchouse, para o que desse e viesse), Zaen começou a distribuir os tabuleiros com hamburger, batatas fritas e bebida e todos, Anfira incluída, comeram com gosto. Afinal a noite já ia a meio e eles tinham jantado cedo para poderem entrar no cemitério antes da hora do fecho e esconderem-se por trás duns jazigos. Parte do stress de Anfira tinha também a ver com a fome que tinha e a consequente vontade praticamente incontrolável de devorar o monte de hamburgers que Zaen tinha empilhado cuidadosamente num altar improvisado em cima de uma sepultura.
Como era de esperar, com a velocidade com que atacou a comida (apesar do tranquilizante), Anfira só podia acabar engasgada (demonstração óbvia de que reencarnar não serve para nada, ou ela ter-se-ia lembrado da razão pela qual Matthieu respirava como respirava…).
No preciso momento em que já não sabiam o que fazer mais para a ajudar (já quase lhe tinham partido algumas costelas, de tanta pancada nas costas), eis que se dá um milagre – ou, para os não crentes, a chamada coincidência do caraças: de uma das sepulturas, ergue-se uma mão, numa cena digna de filme de zombies, seguida doutra mão, esta segurando o que lhes pareceu ser um mapa com um enorme X vermelho próximo do centro. Após uns bons 10 minutos de esbracejos, finalmente aparece o resto do corpo de uma rapariga, aproximadamente da idade de Anfira e Zaen e estranhamente parecida com ambos. À excepção de Anfira, que continua a lutar por um bocado de ar, todos ficam aparvalhados a olhar para ela. Ela devolve-lhes o olhar estupefacto e depois grita-lhes:
- Vocês são estúpidos ou quê?! Estavam a pensar em ajudar quando? Quando já só fosse preciso volta a enterrar-me as mãos, depois de ter morrido asfixiada? E iam enterrar aquela comigo, não? – pergunta-lhes, apontando para Anfira, cujo rosto adquiria, a cada momento, uma cor mais estranha.
Com algum esforço, os três pararam de rir – por quase ter asfixiado, a jovem gritava num timbre extremamente hilariante – e voltaram a lembrar-se de que talvez fosse boa ideia ajudarem Anfira, que olhava incrédula para eles e que, se conseguisse, apoiaria com voz igualmente cómica os protestos da recém-chegada.
A rapariga, que parecia ter finalmente recuperado o fôlego e as forças, avançou para Anfira, com o seu vestido outrora leve e esvoaçante agora completamente amachucado, como as asas duma borboleta acabada de emergir do casulo. Casulo, sepultura, vai tudo dar ao mesmo, tirando o pormenor de ninguém sair vivo da sepultura…
Adiante: pegando em Anfira, a rapariga aplica-lhe a manobra de Heimlich. Um pedaço de hamburger sai-lhe disparado da garganta a alta velocidade e atinge em cheio o pescoço de Matthieu, que cospe de imediato o pendente que tinha engolido muitos anos antes e que lhe tinha valido noites bem animadas com Madalena.
Depois de alguns minutos utilizados por todos para se beliscarem repetidamente e por Anfira para respirar e se controlar para não fazer uma enorme fogueira e os pôr lá todos (ela sempre tinha sido apreciadora dos métodos da inquisição católica), rodearam a rapariga, agradecendo-lhe e enchendo a atmosfera já de si tétrica do cemitério com questões, algumas aparentemente idiotas, como “Qual é o teu tipo sanguíneo?”. Considerando-se mais ou menos satisfeitos, declararam, por fim:
- Foste o máximo. Salvaste o dia… noite… pois, isso.
- Pois, lá em casa é que não me acontecem destas – pensou Niel, sacudindo finalmente a terra e alguns pequenos ossos do seu vestido. E murmurou para si própria – parece que Ceridwen tinha razão, desta vez devo mesmo ter caído num precipício…

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