domingo, 24 de junho de 2007

Capítulo 6 (IV)

- Ora portanto, diz-nos lá de onde vens – pediu Zaen, quando todos se voltaram a sentar , uns no chão outros nalguma sepultura.

- Bom, eu vivo nas catacumbas de um centro comercial, com um morcego cegueta e uma tia esquisita que insiste em que vá atrás do local assinalado neste mapa, mas eu acabo sempre por cair num buraco e nunca lá chego. Primeiro era por não saber ler mapas. Agora foi por não saber o que queria dizer a inscrição que estava num placa ao pé de um poço.

Todos ficaram a olhar para Niel, com aquelas carinhas que fazemos quando temos pena de alguém e não sabemos bem porquê.

- Lembras-te do que estava escrito nessa placa? - perguntou Madalena, agarrada a Matthieu, que massajava a garganta e olhava para o pendente que tinha cuspido.

- Sim, acho que consigo soletrar – respondeu Niel. - Deixem cá ver se me lembro...

Ao longe ouviu-se o pio de uma coruja, que andava na sua caçada nocturna, como habitualmente. A noite ia avançada e a lua cheia brilhava lá no alto, imponente e majestosa, cada uma das suas crateras um apelo a uma observação com um telescópio (que pode ser daqueles rascos – como é a lua vê-se qualquer coisa, quando ao resto não prometo nada). Uivos cortaram o pio da coruja. A coruja voo para longe com um pio de aviso a outra corujas: “mantenham-se no ar, lobisomem à vista”. Um ser metade lobo metade homem saltou de trás de uma campa e aterrou mesmo em frente a Matthieu. O vampiro não se mexeu. O colar com o pendente em forma de estrela pendia-lhe da mão, oscilando suavemente, com a brisa da noite. Matthieu olhava, tal como os outros, para Niel, expectante. A rapariga continuava de mão no queixo e olhar preso no céu estrelado a pensar, a tentar lembrar-se. O lobisomem rosnou a Matthieu e mostrou-lhe os dentes e olhou para ele com olhos raiados de sangue e a espumar da boca. O vampiro não se mexeu. O lobisomem parou de rosnar, fechou a boca e tocou no ombro de Matthieu com um dedo. Este continuou impávido e sereno a olhar para Niel. O lobisomem sentou-se, com ar de gatinho fofo e pôs-se a olhar para o vampiro, de braços/patas cruzados. Após olhar para ele fixamente durante cinco minutos, revirou os olhos e pôs-se a olhar para o pendente brilhante de oscilava de um lado para o outro, tão harmonicamente. Para lá, para cá, para lá, para cá, para lá... *pum*

O lobisomem caiu no chão hipnotizado, imerso num sono profundo. Foi então a vez do sol (aquela coisa brilhante que parece uma cruz) dar o ar de sua graça. A lua foi dormir e o astro rei ergueu-se no céu em todo o seu esplendor. Por volta do meio-dia o homem que na noite anterior era lobisomem acordou. Olhou para os cinco jovens sentados à sua volta e coçou a cabeça . Arqueou a sobrancelha e olhou para si. Levantou-se, tapou as partes baixas com as mãos e fugiu do cemitério. Alguns zombies passaram por ali e cumprimentaram a zombi da campa a seguir àquela em que Niel estava sentada. A zombi estava a cozinhar uns ovos estrelados na campa.

- Atão Maria, tá tudo bom? - perguntou um dos zombies.

- Está. Estou a fazer o almoço. São servidos?

- Nã, obrigado. Já comemos ali na tasca do Zé, ao lado da capela. Tou a ver que a tua vizinha arranjou umas estátuas muita lindas. No meu tempo não havia nada nisto.

- Pois é. Gente rica! Devem ser agora daquelas de cera. Olha para a perfeição! Até parecem verdadeiros. Até parece que respiram!

- Pois é. Mas ela podia ao menos ter arranjado a estátua do Mourinho. Ao menos era uma “special one”.

Os Zombies desataram a rir à gargalhada e prosseguiram a caminhada. O sol (aquela coisa brilhante que parece uma cruz) cansou-se de andar de um lado para o outro e foi dormir, como todas as noites (foi ligar-se à tomada, funciona a bateria). A lua voltou ao palco onde decorre a acção principal, agora ligeiramente ratada (Deus, o ratinho, gosta de comer lua. Está tudo explicado!). Subitamente todos acordaram do transe com o guincho de Niel.

- Ah, já me lembro.

O suspiro de alivio foi audível por todo o cemitério. A coruja suspirou tanto que acabou sem ar e esticou o pernil, patil, asil, o que lhe quiserem chamar.

- Ora bem – continuou Niel. - Começava com um W e depois tinha um O e um R e um M e depois um H, um O, um L e por fim um E. Alguém sabe o que quer dizer?

- Wormhole – disse Anfira, juntando as letras todas e pronunciando a palavra correctamente. - É inglês, rapariga. Mas o que é que vocês aprendem na escola?

- Escola? - perguntou Niel, confusa. - Mas eu nunca fui à escola.

AH! Está tudo explicado... Adiante.

- Ok, esquece isso – disse Madalena. - Wormhole significa em português “buraco de verme” ou “buraco de minhoca”. O que percebes de Física?

- Física? O que é isso, pá? Alguma marca de poços?

- A mim parece-me que ela percebe bastante de Física. Como ela diz, passa a vida a cair em buracos. Querem melhor evidência da sua sabedoria sobre queda de graves e lançamento de projecteis? - falou Matthieu, com uma voz límpida e sensual.

Madalena suspirou a agarrou-se a Matthieu, atirando ambos para o chão, que rebolaram aos beijos para trás de um jazigo. Anfira e Zaen não resistiram a beijarem-se. Um brilhante clarão iluminou o cemitério, seguido de dois gritos de dor.

- Fogo do Inferno! - exclamou Madalena. - Não vejo nada! Estou cega.

- A culpa é deste pendente manhoso – gritou Matthieu, atirando o colar pelo ar, que foi bater na cabeça de Niel e a fez desequilibrar-se.

Um pendente voou pelo ar, acompanhado do mapa. Niel caiu para trás em direcção ao chão, que se abriu e a engoliu. Anfira apanhou o colar e o mapa e observou-os.

- Isto agora foi muito estranho – murmurou Zaen, assustado.

- Podes crer. E agora? O que fazemos ao mapa e ao colar?

- Está na altura de irmos fazer uma visitinha a um velho amigo.

- Quem? - perguntou Anfira, curiosa.

Zaen não respondeu, limitando-se a sorrir.

- Ei, ei! – gritou Madalena. – Nada de ideias. Primeiro levem-nos ao hospital.

domingo, 17 de junho de 2007

Capítulo 6 (III)

De volta à Terra, os nosso heróis conversam alegremente num cemitério – é dia (noite) de sacrifício para Zaen e os outros resolveram acompanhá-lo, em parte por pura amizade, mas também um pouco para compreenderem melhor a lógica dos rituais, de forma a tentarem dissuadi-lo daquela estupidez.
Anfira estava obviamente chocada; cristã como era, tudo aquilo era horrível para ela e teve de se esforçar bastante para não fazer ali mesmo uma fogueira e queimar Zaen no momento. Matthieu e Madalena esforçaram-se bastante também, provavelmente até mais que Anfira, pois tiveram de ser eles a segurá-la e, afinal, ela tem super-poderes…
Depois de a conseguirem acalmar (com um tranquilizante poderoso que tinham cravado ao Dr. Orchouse, para o que desse e viesse), Zaen começou a distribuir os tabuleiros com hamburger, batatas fritas e bebida e todos, Anfira incluída, comeram com gosto. Afinal a noite já ia a meio e eles tinham jantado cedo para poderem entrar no cemitério antes da hora do fecho e esconderem-se por trás duns jazigos. Parte do stress de Anfira tinha também a ver com a fome que tinha e a consequente vontade praticamente incontrolável de devorar o monte de hamburgers que Zaen tinha empilhado cuidadosamente num altar improvisado em cima de uma sepultura.
Como era de esperar, com a velocidade com que atacou a comida (apesar do tranquilizante), Anfira só podia acabar engasgada (demonstração óbvia de que reencarnar não serve para nada, ou ela ter-se-ia lembrado da razão pela qual Matthieu respirava como respirava…).
No preciso momento em que já não sabiam o que fazer mais para a ajudar (já quase lhe tinham partido algumas costelas, de tanta pancada nas costas), eis que se dá um milagre – ou, para os não crentes, a chamada coincidência do caraças: de uma das sepulturas, ergue-se uma mão, numa cena digna de filme de zombies, seguida doutra mão, esta segurando o que lhes pareceu ser um mapa com um enorme X vermelho próximo do centro. Após uns bons 10 minutos de esbracejos, finalmente aparece o resto do corpo de uma rapariga, aproximadamente da idade de Anfira e Zaen e estranhamente parecida com ambos. À excepção de Anfira, que continua a lutar por um bocado de ar, todos ficam aparvalhados a olhar para ela. Ela devolve-lhes o olhar estupefacto e depois grita-lhes:
- Vocês são estúpidos ou quê?! Estavam a pensar em ajudar quando? Quando já só fosse preciso volta a enterrar-me as mãos, depois de ter morrido asfixiada? E iam enterrar aquela comigo, não? – pergunta-lhes, apontando para Anfira, cujo rosto adquiria, a cada momento, uma cor mais estranha.
Com algum esforço, os três pararam de rir – por quase ter asfixiado, a jovem gritava num timbre extremamente hilariante – e voltaram a lembrar-se de que talvez fosse boa ideia ajudarem Anfira, que olhava incrédula para eles e que, se conseguisse, apoiaria com voz igualmente cómica os protestos da recém-chegada.
A rapariga, que parecia ter finalmente recuperado o fôlego e as forças, avançou para Anfira, com o seu vestido outrora leve e esvoaçante agora completamente amachucado, como as asas duma borboleta acabada de emergir do casulo. Casulo, sepultura, vai tudo dar ao mesmo, tirando o pormenor de ninguém sair vivo da sepultura…
Adiante: pegando em Anfira, a rapariga aplica-lhe a manobra de Heimlich. Um pedaço de hamburger sai-lhe disparado da garganta a alta velocidade e atinge em cheio o pescoço de Matthieu, que cospe de imediato o pendente que tinha engolido muitos anos antes e que lhe tinha valido noites bem animadas com Madalena.
Depois de alguns minutos utilizados por todos para se beliscarem repetidamente e por Anfira para respirar e se controlar para não fazer uma enorme fogueira e os pôr lá todos (ela sempre tinha sido apreciadora dos métodos da inquisição católica), rodearam a rapariga, agradecendo-lhe e enchendo a atmosfera já de si tétrica do cemitério com questões, algumas aparentemente idiotas, como “Qual é o teu tipo sanguíneo?”. Considerando-se mais ou menos satisfeitos, declararam, por fim:
- Foste o máximo. Salvaste o dia… noite… pois, isso.
- Pois, lá em casa é que não me acontecem destas – pensou Niel, sacudindo finalmente a terra e alguns pequenos ossos do seu vestido. E murmurou para si própria – parece que Ceridwen tinha razão, desta vez devo mesmo ter caído num precipício…

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Capítulo 6 (II)

Deus chorava porque se sentia incompreendido. Quer dizer, ele não era bem Deus, mas todos achavam que sim e fazia-o sentir-se mal. Não consigo próprio por os andar a enganar, mas por pensar que bem podiam ter criado gentinha mais esperta. Exacto, podiam…
Apesar da luta de religiões na Terra, a verdade teológica deste universo está nas Sagradas Bolas de Energia, das quais os terrestres (de nascença ou ressurreição) nada sabem. O dito ratinho é, na realidade, uma dessas Bolas, apenas com pêlo. Todas as crenças da Humanidade e afins provêm de alguma manifestação das Bolas de Energia. No entanto, ao contrário de todos aqueles a quem chamamos deuses, as Sagradas Bolas de Energia não se preocupam muito em serem adoradas. Vendo bem, nem sequer se preocupam muito com terem aspecto de bolas, surgindo muitas vezes com outras formas, o que explica muitas aparições (como exemplo, vejamos que a Nossa Senhora, em Fátima, não era lá muito esférica…).
Naturalmente, Ceridwen sabe, ou não fosse a Sábia Suprema, mas não revela, até porque aquelas guerrazinhas a divertem bastante. Ainda hoje se ri quando se lembra do sotaque que a Bola “Deus” Ratinho escolheu para falar…
Entre os poucos que partilham o conhecimento da Verdade com Ceridwen, há ainda quem considere a existência dum ser acima das Sagradas Bolas de Energias, um verdadeiro Deus, que estaria para as Bolas de Energia um pouco como o Ronnie O’Sullivan está para as bolas de snooker. Para Ceridwen, esta é uma ideia disparatada – já alguém viu um 147 de Sagradas Bolas de Energia? Claro que não! Então, podia, no máximo, ser um Ali Carter… Apesar de ter há muito chegado a esta conclusão, Ceridwen não contava o que sabia, rindo-se para si da ignorância dos outros supostos sábios. Vendo bem, Ceridwen ria-se muito sem razão aparente e talvez tenha sido por isso que acabou internada num hospital psiquiátrico…

Capítulo 6 – Deus: tudo o que sempre quis saber mas nunca teve coragem de perguntar

Deus rumou ao Reino 7-3 em 7,3 segundos e reuniu todas as personagens em 7,3 instantes. Tinha ouvido falar de vampiros, sangue, posições menos próprias, reencarnações e outras coisas maradas, e achou que era altura de agir…
No entanto, na Terra, Deus acabava de dar as belas das tábuas com os mandamentos ao gajo lá das profecias e tal, mas, como viajou em 7,3 segundos até ao reino 7-3 passaram-se 7300 anos na Terra, o suficiente para que o pessoal gritasse, suplicasse e rezasse à vontade por Deus que o gajo não ouviria.
Enfim, não se pode deixar os putos sozinhos nem um instante, rebentam logo com a casa…

Mas voltando ao Reino 7-3, a intervenção de Deus fez com que todos ficassem surpreendidos. Até os super-cristãos não acreditavam em Deus… muito menos que ele fosse… assim tão… pequeno…
Porém, sem lhes dar tempo para pensar, Deus disse a todos os personagens 7-3:
- Meuszzz filhoszzz. Eu estei hoji aquei pêra vószz dizere que estais pecando muito e que, por isso, tereis que aguentares com o casteigo máximo, o mais maior grande. Irais ouvir… um discurso sobre oszzz valoires da bida. Por ixo, estais calados e ouvides agora.

Deus, que na verdade não era maior que uma pequena ratazana com um aspecto nerd, começou a falar. E falou, falou, falou. E, para todos os habitantes do Reino 7-3, foi como se tudo demorasse muito mais do que 7300 anos.
Felizmente, adormeceram praticamente todos, despertando apenas com um choro. Quando conseguiram limpar os olhos e recuperar da imensa seca, espantaram-se por ver o pequeno ratinho – Deus – a chorar como… como um ratinho que é Deus.